Saturday, October 14, 2006

Outono em Syracuse NY

Salut tout le monde! De repente lembrei-me de uma frase com muito significado de um passado muito bonito “Tout le monde à L’Escalier!” Tempos de Liège … Aqui estou em mais um fim-de-semana em Nova Iorque. O Outono chegou e creio que a ameaça da neve fez-me decidir em actualizar o blog. De facto havia ainda momentos do verão dignos de registo e pensar que a neve está à porta, talvez mesmo este fim-de-semana, faz-me sentir que tenho de me preparar.

Estes últimos meses tenho estado em Syracuse, a preparar a proposta de investigação que irei apresentar em frente do comité que me vai avaliar no início do ano nos Candidacy Exams. A partir desse momento posso concentrar-me apenas na minha dissertação, o que vai ser fenomenal. Este semestre decidi fazer duas cadeiras que poderão ajudar-me a desenvolver a proposta. Uma das disciplinas é no departamento de Química, Stable Isotope Tracers in the Environment. A outra disciplina é mais metodológica e filosófica (mas é exactamente o que me encontro a fazer aqui, tornar-me Doctor of Philosophy em Ciências Ambientais, mais especificamente Gestão de Zonas Costeiras), e chama-se Research Methods for Natural Resources Management. E cá ando, entretida com esta vida maravilhosa, que se abre nos nossos olhos a cada amanhecer.

Sunday, October 1, 2006

Um poema com cheiro a aulas de Filosofia ...

Este poema existe muito cedo na minha memória, aquela característica de mim óptima para números, péssima para nomes. Talvez por isso nunca me tenha atraído a taxonomia, ou talvez porque não entenda ao certo para que me pode servir saber montes de nomes de peixes e pássaros e o que for ... Talvez um lado de mim queira preservar a inocência de olhar para o mundo sem catalogar, sem imediatos "ah, sim aquilo é ... (isto ou aquilo) ... apenas apreciar.

Bom, mas onde estava eu? Ah sim, memoria, oops não, o poema com raízes fundas na minha memória. Lembro-me de uma cassete (ja na altura) velha que a minha mãe tinha em que a Maria Bethânia entoava o Cântico Negro com aquela garra que so ela tem na sua voz. O Cantico Negro apareceu mais tarde, entre Sócrates e Platão, numa aula de Filosofia. Adorei a "stôra" logo ali, pela belíssima escolha.

Há dias por alguma razão que não sei explicar, o poema apareceu de novo, a ocupar imenso "espaço" na minha consciência. Tive um impulso que não consegui conter e partilhei-o com os colegas e alguns professores aqui da universidade. Enfim, e' sempre bom ir divulgando estas coisas boas de Portugal, para alem de mim, claro está!

Aqui está ele. O poema de José Régio, de 1925, aborda a problemática do indivíduo que anseia pela sua afirmação a partir da contestação da norma e do afastamento da vivência colectiva que despersonaliza tudo. Este poema consta do seu primeiro livro: "Poemas de Deus e do Diabo".

José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estreia "Poemas de Deus e do Diabo" apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

"Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
--- Sei que não vou por aí.


Em inglês tentei preservar a energia dos versos, claro que com grande limitação:

“Come this way” – some tell me with sweet eyes,
opening their arms to me, so sure
that it would be good if I listened to them
when they tell me: “Come this way”!
I look at them with lassitude in my eyes,
(there are, in my eyes, ironies and weariness)
And I fold my arms,
and never go that way…

No, I’m not going that way! I go only where
my own steps will take me…
If, to what I seek to know, none of you are responding,
why do you repeat: “Come this way”?
I would rather slip on muddy alleys,
whirl in the winds
like rags, and drag bloody feet,
than go that way…

How will you thus be the ones
to give me the impulse, the tools, and the courage
to overcome my own obstacles?
Runs through your veins the ancient blood of forefathers,
and you love what is easy!

I love the Distant and the Mirage,
I love the abysses, torrents and deserts…
Go! You have roads,
you have gardens, flowerbeds,
you have homelands, you have roofs,
and you have rules, and treaties, and philosophers,
and wise men.
I have my MADNESS!
And I rise it, like a torch, ablaze in the dark night,
and I feel foam, and blood, and chants on my lips…

God and the Devil are my guides, no one else.
All have had a father, all have had a mother,
but I, who do not begin and do not end,
was born from the love that exists between God and the Devil.
Ah, let no one give me pious intentions!
Let no one ask me for definitions!
Let no one tell me: “Come this way”!

My life is a storm unleashed,
a wave that crested,
one more atom animated…
I don’t know which way I’m going,
I don’t know where I’m going,
- I know that I’m not going that way!